Qualidade de vida na perspectiva de idosas com incontinência urinária
A qualidade de vida (QV) pode ser entendida como uma construção social relativizada por fatores culturais1, com características subjetivas, bidirecionais, multidimensionais2 e mutáveis3. Ela foi inicialmente introduzida no âmbito da saúde3 para avaliar desfechos objetivos4,5. Posteriormente, percebeu-se a necessidade de avaliá-la partindo da opinião pessoal3, o que ressaltou a subjetividade do construto3,6.
É necessário distinguir QV de qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS). A primeira tem concepção mais ampla e pode ser ilustrada pelo conceito proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS)6, segundo o qual QV é "a percepção do indivíduo acerca da sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações". A QVRS, por sua vez, recebe influência do conceito de saúde proposto pela OMS e designa uma série de modelos conceituais que definem o construto por meio de dimensões da vida e da percepção individual da saúde. Nessa perspectiva, entende-se que os funcionamentos físico e emocional repercutem diretamente sobre a QV enquanto as anormalidades biológicas a influenciam indiretamente devido a sua relação causal com a doença e com a incapacidade física7.
Contudo, entende-se que todos esses aspectos relacionados à saúde não podem estar desvinculados de outras dimensões da vida como, por exemplo, dos papéis e da interação social, das relações econômicas, culturais, políticas e espirituais. Tais dimensões, quando associadas às dimensões de vida diretamente relacionadas à saúde, constituem o que se designa qualidade de vida global, construto mais amplo que incorpora fatores que interferem na vida individual e coletiva7.
O processo de envelhecimento, embora fisiológico, é permeado por maior vulnerabilidade às doenças, as quais podem interferir na autonomia8,9, na mobilidade, na destreza manual, na lucidez10 e na capacidade funcional das vias urinárias inferiores e da bexiga11, favorecendo a incontinência urinária (IU). Essa é definida como "qualquer perda involuntária de urina"12, é muito comum entre idosos e sua real prevalência é imprecisa, provavelmente devido às diferentes amostras e tipos de IU estudados13, ao método de pesquisa utilizado10 e à subestimação dos dados14,15.
A IU relaciona-se a comprometimento físico e psicossocial16. Há evidências de que os incontinentes experimentam sentimentos de solidão, tristeza e depressão mais expressivos que os continentes13 e que a influência da IU na QVRS varia de acordo com o tipo de incontinência16 e com a percepção individual do problema2,13.
Coyne et al.16 estudaram o impacto de três tipos de IU na QVRS e concluíram que a pior QVRS foi observada em pacientes com incontinência urinária mista, especialmente devido ao componente de urgência miccional característico deste tipo de IU. Ko et al.13 investigaram o impacto da IU na QV de idosos e concluíram que os incontinentes apresentavam-se mais deprimidos e percebiam pior sua QV que os continentes.
A avaliação do impacto da IU e de intervenções a ela relacionadas na QVRS pode ser feita de forma objetiva ou subjetiva2,13 por questionários específicos2,17 ou por entrevista na qual o incontinente avalia o impacto da perda urinária em sua vida18.
Investigar como cada incontinente percebe as repercussões da IU permite ao profissional adequar a conduta no sentido de atender às necessidades e expectativas individuais, o que favorece a adesão do paciente e o sucesso da intervenção terapêutica.
Frente à influência negativa da IU sobre a QV13,16 e diante da carência de estudos qualitativos sobre QV de idosas incontinentes, partindo da percepção individual, este estudo pretendeu explorar o tema procurando desvendar como idosas incontinentes submetidas à fisioterapia para IU percebem sua QV atual.
METODOLOGIA
O presente estudo teve caráter exploratório e descritivo e pautou-se no estudo experimental de Souza17 no qual se avaliou a quantidade de urina perdida e a QV de trinta e sete pacientes do sexo feminino, com idade igual ou maior que 50 anos. Os resultados, estatisticamente significativos, confirmaram os benefícios do tratamento fisioterapêutico conservador e sua repercussão na melhora da QV. Maiores informações encontram-se disponibilizadas na dissertação de Souza17.
Decorridos aproximadamente dezoito meses do término do estudo acima mencionado, pretendeu-se conhecer a percepção que as idosas incluídas no referido estudo tinham de sua QV atual. Para tanto, optou-se por investigação de caráter qualitativo, método capaz de melhor responder às questões em estudo.
Seleção da amostra, instrumentação e operacionalização
Da amostra de Souza17, foram selecionadas as mulheres com 60 anos e mais e o critério de amostragem foi determinado pela seqüência dos nomes dispostos na lista para contato. O tipo de IU (esforço, urgência ou mista) não foi considerado na seleção das idosas; bastava que tivessem participado do estudo de Souza17. Vinte e cinco idosas compuseram o universo de investigação. Após contato, vinte e duas concordaram em colaborar com o estudo, e uma recusou-se. Duas não puderam ser contatadas devido à alteração do número telefônico.
Para a coleta de dados, empreendeu-se a elaboração de um roteiro de entrevistas (Anexo 1) cujas questões foram formuladas com base em observações clínicas e nos pressupostos teóricos disponíveis na literatura3,16.
Visando resguardar a identidade das respondentes, seus nomes verdadeiros foram substituídos por nomes fictícios.
Esta pesquisa foi avaliada e aprovada pelo Comitê deÉtica em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, Parecer ETIC nº 116/05.
O estudo piloto
Com objetivo de testar o questionário, realizou-se entrevista piloto, a qual possibilitou a verificação da necessidade de adequações. Após a implementação das alterações no questionário, iniciou-se o processo de coleta de dados.
As entrevistas
As idosas foram contatadas pela pesquisadora via telefone. Na ocasião, cada uma delas recebeu breve esclarecimento acerca do estudo e foi questionada sobre seu interesse em participar do mesmo. Vinte e duas concordaram em colaborar.
As entrevistas aconteceram nas residências das respondentes e tiveram duração média de 75 minutos. Cada idosa recebeu uma única visita da pesquisadora e, antes da entrevista, assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Foram realizadas doze entrevistas. A coleta dos dados foi interrompida uma vez que se observaram pontos reincidentes nos relatos e o surgimento de novas informações tornou-se raro19. As entrevistas foram gravadas em fitas magnéticas, com autorização prévia das participantes, transcritas e encaminhadas às idosas para confirmação das informações.
No decorrer do processo de entrevistas, foi utilizado diário de campo como forma complementar de registro dos acontecimentos.
Análise e interpretação dos resultados
As entrevistas transcritas foram submetidas à leitura preliminar com finalidade de aumentar o contato da pesquisadora com o material a ser analisado. Em seguida, procedeu-se à exploração propriamente dita do material por meio da análise de conteúdo. O material transcrito foi exaustivamente estudado com objetivo de se encontrarem recorrências nas falas, as quais funcionaram como indicadores para o agrupamento das respostas em categorias temáticas. Cada parte do texto foi focalizada, analisando-se parágrafo por parágrafo dos dados coletados e grifando as palavras-chave que pareciam representar o significado das experiências das participantes. Essas unidades do texto foram analisadas e agrupadas em categorias temáticas por meio das quais se classificou o material analisado19. Essas categorias temáticas permitiram compreender e organizar os dados para melhor apresentá-los e favoreceram as interpretações finais, as quais foram também subsidiadas pelas informações contidas no diário de campo.
Para a apresentação final dos resultados, foram utilizadas as informações relativas aos domínios social e psicológico do construto QV.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Descrição da amostra
Participaram deste estudo doze idosas, cujas idades variaram entre 61 e 83 anos e que se submeteram a tratamento fisioterapêutico para IU por ocasião do estudo de Souza17. Seis idosas enquadraram-se na faixa etária entre 60 e 70 anos; cinco, entre 71 e 80 anos e uma, acima de 80 anos.
Todas as idosas são consideradas incontinentes12, apesar do volume de urina perdido e da freqüência das perdas serem inferiores aos observados no estudo de Souza17. Nenhuma das idosas estava em tratamento médico ou fisioterapêutico para as perdas urinárias relatadas nas entrevistas.
No grupo estudado, cinco idosas eram viúvas, quatro casadas, duas divorciadas e uma solteira.
As informações sobre escolaridade revelaram que três idosas concluíram o 3º grau e três possuíam formação de nível técnico. Duas idosas possuíam o Curso Normal e duas concluíram o 2º grau. O nível de escolaridade mais baixo foi o de 1º grau, concluído por duas idosas.
Quanto à atividade profissional, nove desempenhavam funções de organização ou execução de tarefas domésticas, e três trabalhavam fora do seu domicílio. Uma idosa, além de organizar o serviço doméstico, prestava assistência voluntária em instituição religiosa. A maioria das respondentes desempenhava, portanto, trabalho informal.
Na presente pesquisa, todas as entrevistadas se disseram vinculadas a alguma religião, havendo predomínio da religião católica.
Percepções das idosas sobre qualidade de vida
Desvendar os fatores relacionados à QV, segundo a percepção das idosas, foi o ponto de partida do presente estudo. As respostas foram agregadas em dois grupos principais: autonomia e saúde.
Relatos como "(...) Qualidade de vida é que a pessoa possa fazer o que ela quiser com pleno uso de todas as faculdades dela, físicas, mentais, psicológicas (...)" (Ubaldina, 61 anos) e "(...) Você fazer tudo o que cê tem vontade (...)" (Martha, 64 anos) nos remetem à autonomia. Sabe-se que a QV dos idosos está vinculada à capacidade de conservação da autonomia e independência8. Enquanto esta se refere à habilidade de executar funções relativas à vida diária de forma a viver com algum ou nenhum auxílio3,8, aquela se caracteriza como a capacidade de estabelecer e seguir suas próprias regras3,8,9.
Algumas idosas fizeram referência à saúde ou à vida saudável como pressuposto à QV. "(...) Boa saúde (...) Porque a pessoa cheia de dores, de problemas, não tem qualidade de vida (...)" (Diomar, 62 anos); "(...) Ter uma vidasaudável. (...) É claro que a família é importante, amigos também, mas sem a saúde é meio difícil (...)" (Carmelita, 74 anos). Nesse sentido, o resultado do presente estudo pode ser comparado ao de Vecchia et al.20. Esses autores, visando conhecer a definição que idosos conferiam à QV, encontraram que saúde e hábitos saudáveis foram pontos relacionados como importantes na construção do conceito. Para Xavier et al.21, o aspecto saúde foi um bom indicador para a QV negativa, uma vez que os idosos que consideraram ter pouca saúde referiram-se à sua QV como negativa, enquanto aqueles cuja saúde foi percebida como boa não a vincularam como um fator de peso na conceituação do construto. Este resultado discorda daquele encontrado por Xavier et al.21 na medida em que mesmo as idosas que consideraram sua QV positiva apontaram saúde como um fator de importância na conceituação do construto. Tal discordância pode ser explicada por diferenças amostrais, uma vez que Xavier et al.21 estudaram idosos de ambos os sexos com idade superior a 80 anos, enquanto o presente estudo restringiu-se a idosas, e somente uma tinha mais de 80 anos. Além disso, esta amostra foi bastante menor que a do citado estudo. Moraes e Souza9 defendem a saúde como uma condição necessária ao envelhecimento bem-sucedido; pois, em seu estudo, encontraram que os idosos que perceberam sua saúde como boa ou muito boa tiveram cinco vezes mais chances de serem classificados como bem-sucedidos quanto ao envelhecimento.
Qualidade de vida auto-relatada
Paschoal3 afirma que concluir sobre a QV, partindo da avaliação pessoal, envolve um processo complexo no qual o indivíduo faz um balanço partindo de valores, princípios e critérios assimilados ao longo da vida. O objetivo final desse balanço é a determinação do grau de satisfação alcançada, o que nem sempre é detectado pelos instrumentos padronizados3. Quando idosos são o foco do estudo, a QV se relaciona com a preservação dos relacionamentos interpessoais, saúde, equilíbrio emocional, estabilidade financeira, trabalho e espiritualidade, entre outros3,20-22. Na avaliação pessoal da QV, duas idosas a classificaram como "mais ou menos" e as demais a consideraram positiva.
Os elementos destacados pelas idosas que se referiram positivamente à sua QV foram relacionamentos pessoais, incluindo família e amigos, estabilidade financeira e vida ativa.
A relevância dos relacionamentos pessoais foi observada em relatos como "(...) Eu acho que eles [os filhos] é que me dão essa qualidade boa da vida. (...)" (Sônia, 83 anos); "(...) Porque o que eu levo mais em consideração é a vivência com os outros (...) Eu vivo muito bem com a minha família, meus amigos (...) Nós temos uma ligação muito forte, muito amiga (...)" (Elizabethe, 76 anos) e "(...) Todos na minha família são muito bons, (...) são muito unidos e isso dá muita qualidade de vida pra gente (...)" (Roseli, 80 anos). Essas observações estão em consonância com os resultados reportados por Vecchia e Bowling. Vecchia et al.20 encontraram que 49% dos entrevistados consideraram importantes as relações interpessoais, enquanto Bowling et al.22 concluíram que 81% dos entrevistados referiram a importância das relações sociais para uma QV positiva. Segundo a OMS, o adequado suporte social ao idoso relaciona-se à redução de morbi-mortalidade e disfunções psicológicas, bem como incremento na saúde e bem-estar geral8. Moraes e Souza9 sugerem que o suporte psicossocial é uma das variáveis significantes e independentes para o envelhecimento bem-sucedido.
A questão financeira foi outro elemento destacado como importante à QV. No estudo de Moraes e Souza9, o conforto material foi um dos preditores para o envelhecimento bem-sucedido em idosas, premissa corroborada pelo presente trabalho. "(...) O dinheiro não é tudo, mas o dinheiro ajuda muito. (...) Não tô pondo o dinheiro na frente de nada, mas pra mim foi uma despreocupação [receber a pensão do ex-marido] e melhorou minha qualidade de vida (...)" (Ana, 67 anos). A conquista de bens materiais no decorrer da vida pode indicar maior tranqüilidade na velhice, visto que o dinheiro pode contribuir para atender às necessidades dos idosos e de seus familiares, tais como alimentação, transporte, vestuário, assistência médica e medicamentos8,20,22. Não dispor de recursos financeiros suficientes, por outro lado, pode ser fator de estresse e preocupação. "(...) No momento eu estou muito preocupada porque não estou trabalhando. Eu aposentei, já tenho vinte anos de aposentada (...) Então, como eu tenho saúde, eu continuo trabalhando. Mas chega um ponto que a gente cansa. (...)" (Regina, 71 anos). O relato de Regina registra uma realidade compartilhada por outros idosos: a necessidade de se manter no mercado de trabalho. Muitos, mesmo após a aposentadoria, continuam a contribuir com recursos financeiros importantes para suas famílias, seja no desempenho do trabalho formal, informal ou nas funções não remuneradas desenvolvidas no lar8. A OMS esclarece que, em países como o Brasil, a participação dos idosos entre a população economicamente ativa se deve com freqüência à carência financeira. Muitos se responsabilizam pela administração do lar e pelo cuidado com as crianças para que os mais jovens possam trabalhar8.
Além dos relacionamentos pessoais e da questão financeira, vida ativa foi apontada como importante à QV, conforme se verifica nos relatos que se seguem. "(...) Eu saio, eu faço as coisas que eu tenho que fazer, eu dou aula de piano, eu toco meu teclado, de vez em quando passeio (...)" (Martha, 64 anos); "(...) Eu (...) tenho um negócio em que eu posso trabalhar, desenvolver minha criatividade, gosto muito de sair, de viajar, de ter momentos de ternura, de amor, (...) da mesma maneira de quando eu era jovem, não tem diferença (...) Acho que isso te dá uma boa qualidade de vida (...)" (Luíza, 64 anos); "(...) Faço tudo que eu quero e consigo tudo que eu quero. (...) Metas é muito importante na vida da gente (...)" (Vera, 68 anos); "(...) Eu vou no banco, eu faço os pagamentos pras minhas filhas... (...) Então minha cabeça tá funcionando! Vou sozinha. Aí eu sei as senhas (...) sei as contas todas de cor. Se eu tivesse aí parada sem fazer nada, só vendo televisão ou fazendo tricô, né, aí era pior. A cabeça tava parada (...)" (Cecília, 77 anos). Manter uma postura ativa é tão relevante que a OMS recentemente vem se empenhando na divulgação do "envelhecimento ativo", o qual é entendido como o processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, objetivando a melhora da QV à medida que os indivíduos envelhecem8.
Há idosos que se ocupam com trabalho voluntário, o qual os beneficia na medida em que contribui para a ampliação do contato social e do bem-estar psicológico8. No presente estudo, Roseli foi a única que relatou participar de atividade voluntária: "(...) Eu presto um serviço [voluntário] aí há 30 anos. Um serviço simples, mas que pra mim é muito importante (...)" (Roseli, 80 anos). No estudo de Vecchia et al.20, a prática da caridade destacou-se como relevante à QV, pois trouxe para os idosos sentimento de satisfação pela prática da solidariedade.
As duas idosas que consideraram sua QV "mais ou menos" relacionaram a precária QV aos problemas de saúde. "(...) Eu tenho [qualidade de vida] mais ou menos. (...) Eu tenho problemas dessa incontinência urinária que é muito desagradável, tenho um problema do meu intestino que é muito solto, tenho problema de coluna. Então, isso aí atrapalha a minha qualidade de vida (...)" (Diomar, 62 anos); "(...) Mais ou menos. (...) Eu tenho a incontinência urinária noturna. (...) Esses problemas meu [artrose nos joelhos, incontinência urinária e fecal, disfunções visuais, depressão] tá me restringindo, me limitando (...) A qualidade de vida minha se depender da saúde, pra mim não satisfaz. (...)" (Carmelita, 74 anos). Diomar e Carmelita referiram-se aos problemas de saúde, incluindo a IU, como comprometedores da QV. Essa observação corrobora estudos nos quais saúde deficitária reflete-se em menor QV20,21 ou envelhecimento mal-sucedido9. A IU, disfunção comum entre as participantes deste estudo, é fonte de restrições nos âmbitos físico, psicológico e social13,16,23-25. Há indícios de que, quando comparada com outras condições de saúde, a IU gera impacto mais significativo nas dimensões social e psicológica da QV13. Nesse sentido, enfatiza-se a QVRS, a qual relaciona-se à QV por meio de dimensões da vida e da percepção pessoal da saúde7. Por meio dela, é possível perceber o quão distante estão as expectativas e a realidade dos indivíduos em relação à sua saúde; quanto maior essa distância, menor tende a ser a QV1.
Repercussões da incontinência urinária na qualidade de vida
Nos discursos das idosas, observam-se referências à restrição no convívio social. "(...) Eu fiquei um pouco isolada (...) eu nem fazia questão de sair por causa desse problema [incontinência urinária] (...)". (Martha, 64 anos); "(...) Tem muitas vezes que eu deixo de fazer as coisas (...)". (Elizabethe, 76 anos); "(...) Eu tinha medo de sair pra trabalhar, eu tinha medo de às vezes não dar tempo de chegar no trabalho ou em casa... Então era muito desconcertante pra mim (...)". (Regina, 71 anos). A literatura faz referências à tendência de isolamento social ao qual estão sujeitos os incontinentes16,24,25, e há indícios de que esses sentem-se mais solitários que os continentes24. Embora a maioria (63,9%) dos participantes do estudo de Locher et al.25 tenha referido não vivenciar restrições em suas atividades em decorrência das perdas urinárias, 36,1% referiram restrições parcial ou total das atividades. O alto índice de participantes que não experimentou restrições nas atividades na pesquisa de Locher et al.25 pode ser explicado pela utilização de estratégias de autocuidado, conforme apontado por algumas idosas no presente estudo: "(...) Eu me prevenia, eu me precavia. Aí eu ia tranqüilamente (...)". (Roseli, 80 anos); "(...) Eu vou nem que seja preocupada, mas eu nunca deixei de ir. Porque se a gente fizer isso, vai anulando a vida da gente (...)". (Ana, 67 anos). A elaboração e a utilização de diferentes estratégias de autocuidado têm por objetivo contornar os inconvenientes das perdas urinárias e, conseqüentemente, permitir a manutenção da rotina social15,23,25.
Houve idosas, inclusive as que relataram uso de estratégias de autocuidado, que fizeram referência ao receio de outras pessoas perceberem o odor característico da urina."(...) Às vezes eu fico "ah, eu acho que eu tô cheirando a urina" (...) Eu penso "ah, meu Deus do céu, será que alguém tá sentido?" Então isso aí é muito chato e eu acho que a incontinência urinária é triste (...)" (Diomar, 62 anos); "(...) fica aquele cheiro ruim na roupa (...) E eu fico com medo das outras pessoas estarem percebendo. Eu tenho muito esse medo de sentirem um cheiro desagradável (...)" (Carmelita, 74 anos). "(...) É uma insegurança. Vergonha de alguém ver, de sentir o cheiro. (...)" (Regina, 71 anos). De fato, embora não tenham sido encontrados, na literatura, registros que corroborem ou refutem a premissa que incontinentes sentem-se receosos quanto à possibilidade de outros perceberem o odor de urina, na prática clínica, essa é uma realidade comum para essa população e foi observada entre as idosas deste estudo.
Os relatos a seguir denotam experiências constrangedoras, as quais podem resultar em traumas e, por conseguinte, favorecer o isolamento social. "(...) Igual no casamento do filho da minha prima (...) Eu tinha levado dois modess e já tinha esgotado. Na hora que eu levanto minha prima falou "nossa, cê tá toda encharcada". (...) Aí tive que virar a saia pra frente pra não ficar muito aparecendo, mas cheguei ensopada. Isso (...) pra mim foi o fim. (...)" (Martha, 64 anos); "(...) Chegou uma vez que eu passei uma vergonha tão grande que eu estava dentro do ônibus só que eu estava com uma calça escura e não deu pra ninguém ver. Mas é muito triste, eu chorei (...)" (Regina, 71 anos); "(...) Eu saí e foi uma festa até beneficente. (...) eu não consegui segurar e eu tava com uma roupa até clara e molhou tudo. (...) Fiquei sentada o tempo todo, (...) dando desculpa que eu molhei na beirada do vaso. Mas não foi. Realmente essa vez eu não esqueci mais. (...)" (Ubaldina, 61 anos). Tais relatos externam constrangimento que, com freqüência, reflete-se em restrição de atividades e isolamento social, o qual é bastante variável. Fultz e Herzog24, por exemplo, encontraram que 81% dos respondentes não restringem suas atividades sociais, enquanto 7% informaram restrição importante nas mesmas atividades. Elas relataram também associação positiva moderadamente forte entre restrição das atividades sociais e impacto psicológico24. Locher et al.25, por sua vez, encontraram que cerca de 36% dos participantes referiram restrição parcial ou total das atividades. Esses mesmos autores concluíram que a percepção da restrição que a IU conferia às atividades foi o mais forte preditor do uso de estratégias de autocuidado por parte das mulheres25. Nesse contexto, os resultados deste estudo mostram que o isolamento social foi pouco observado, pois muitas idosas relataram uso de estratégias de autocuidado, tais como absorventes e localização prévia do toalete para manter a rotina social.
Nos discursos das idosas, verificou-se o quão difícil é a convivência com as perdas urinárias. Essa dificuldade relaciona-se ao receio de perdas em locais não apropriados e pode, com freqüência, ser motivo de estresse. "(...) Muitas vezes eu tô em algum lugar assim, num shopping, e tenho que voltar correndo pra casa (...) Isso tá me deixando meio chateada (...)" (Carmelita, 74 anos); "(...) Eu acho deprimente eu, com essa aparência de jovem ter que ficar usando até uma fralda porque eu tenho incontinência urinária (...)" (Diomar, 62 anos). A mesma idosa prossegue relatando "(...) Agora eu tô amanhecendo toda molhada, perdendourina sem saber... Isso é horrível! (...) Às vezes na hora da relação sexual eu urino na cama (...)" (Diomar, 62 anos). Nesses discursos, percebeu-se preocupação permanente com as perdas urinárias e sentimentos de descontentamento resultantes da imprevisibilidade e/ou inevitabilidade dessas perdas, o que poderia gerar impacto psicológico13,23-25. Os estudos são, contudo, controversos. Fultz e Herzog24, por exemplo, mostraram que a maioria das respondentes referiu não perceber impacto negativo no bem-estar e que a condição emocional foi a mais comprometida. Locher et al.25, por outro lado, registraram que menos da metade dos participantes relatou sentirem-se extremamente perturbados com sua IU.
CONCLUSÕES
A análise do conteúdo dos discursos permitiu concluir que saúde e autonomia vincularam-se ao conceito de QV e que mesmo idosas incontinentes perceberam sua QV de maneira positiva. As idosas que perceberam sua QV como "mais ou menos" a relacionaram com a saúde precária. Evidenciou-se também que a QV vinculou-se aos relacionamentos pessoais, estabilidade financeira e vida ativa.
Neste estudo, o comprometimento psicológico vinculou-se à preocupação e desagrado diante das perdas urinárias e receio dessas acontecerem em locais não apropriados, enquanto a restrição no convívio social, a vivência prévia de situações constrangedoras e o receio de outras pessoas perceberem o odor de urina vincularam-se ao comprometimento social. A QV, contudo, foi positivamente percebida, sugerindo que outros aspectos se sobrepõem aos prejuízos psicossociais gerados pela IU.
A carência de estudos qualitativos voltados à percepção das perdas urinárias e sua implicação na QV dificultou a discussão dos resultados alcançados e, por essa razão, sugere-se que pesquisas metodologicamente similares sejam implementadas com vistas à melhor compreensão dos dados obtidos. Para a detecção de diferenças mais sutis quanto ao impacto da IU nos domínios psicológico e social, sugere-se que estudos qualitativos envolvendo impacto da IU na QV de idosas considerem os diferentes tipos de IU, as diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade.
Embora as informações colhidas encontrem restrito subsídio na literatura científica, dada sua escassez, elas contribuem para incrementar o corpo de evidências científicas relativas à IU e QV de idosas e favorecem melhor compreensão do impacto psicossocial da IU.
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IDepartamento de Fisioterapia, Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG - Brasil
IIDepartamento de Fisioterapia, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil
IIIDepartamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
IVDepartamento de Fisioterapia, UFMG
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